Diário da tua ausência – a chuva no vidro
Published domingo, março 20, 2005 by Rui Vieira | E-mail this post
Eu já não me consigo lembrar de nós. Estranho porém que não te consigo esquecer a ti. Mas a imagem de nós juntos parece já tão distante e indistinta como o vidro baço onde as gotas de chuva fria deslizam no pó do pára-brisas do carro sujo. Ligo as escovas e a minha visão da vida volta a ficar nítida por mais uns segundos até voltar ao mesmo padrão disforme do vidro molhado... será o amor tanta chuva que nos embacia as janelas e não me deixa ver… não me deixa seguir o meu caminho…
E assim espero sozinho neste sábado à noite perto de tua casa. Dentro do carro apressadamente estacionado numa rua tão normal como tantas outras normais, distinta apenas por ser o local onde combinamos encontrarmo-nos e onde aguardo pacientemente por alguém que nunca chega, nunca vem, nunca está, nunca é…
Vou contando ansioso os minutos que não passam, seguindo com os olhos os carros que chegam com os faróis no escuro como olhos esgazeados, como borrões indistintos de luz no vidro embaciado mas nenhum deles é o teu, já não me lembro da última vez que foi o teu. O teu não brilha no escuro da minha espera é apenas lembrança do pouco que ainda me consigo lembrar.
Já passaram duas horas… tu já não deves aparecer… tanto tempo depois de te teres ido embora, esperava que nos reencontrássemos de novo. Esperava que o tempo te tivesse feito perceber que a borboleta que és um dia cansa as asas e a árvore que tenho sido, onde sempre pudeste pousar, tem os braços cansados como galhos de árvore velha que morre e onde os passarinhos já não fazem ninhos. Esperava que percebesses que não sou eterno como o meu amor por ti nesta eterna espera.
Tu já não deves aparecer… dói, mas é verdade! E a visão borratada do mundo continua, não sei se pela chuva que bate na vidraça do carro se pelos olhos rasos de lágrimas que sofregamente enxugo num suspiro. As gotas salgadas que me rolam na face como as gotas pequenas geladas que deslizam pelo vidro abaixo lá fora. Às vezes gosto de imaginar que somos duas gotas que deslizam no vidro, na estúpida probabilidade matemática de nos unirmos algures no caminho numa gota só.
Mas não deve ser hoje… tu já não deves aparecer… e eu já cá não estarei.
Limpo as lágrimas, limpo o vidro, dou à chave e sigo em frente.
de João Natalin http://poetrycafe.weblog.com.pt/deixo-vos este maravilhoso conto publicado em 12 de Março como prelúdio do Dia Mundial de Poesia que amanhã se comemora.