LETRAS que geram palavras PALAVRAS que criam frases FRASES que dão sentido à Vida




Hoje, noite de Abril sem lua,
A minha rua
É outra rua.

Talvez por ser mais que nenhuma escura
E bailar o vento leste,
A noite de hoje veste
As coisas conhecidas de aventura.

Uma rua nova destruiu a rua do costume.
Como se sempre nela houvesse este perfume
De Vento leste e Primavera,
A sombra dos muros espera
Alguém que ela conhece.
E às vezes o silêncio estremece
Como se fosse a hora de passar alguém
Que só hoje não vem.


Sophia de Mello Breyner Andresen
in "Ao Porto - Colectânea de poesia sobre o Porto"


QUEM SABE


Importas-te muito que Deus exista?
Importas-te muito que uma névoa te desenhe o destino?
Que as tuas orações necessitem de um interlocutor?
Que o grande criador possa ser o grande injusto?
Que os torturadores possam ser filhos de Deus?
Que se tenha que amar a Deus sobre todas as coisas e não sobre os próximos e próximas?
Já pensaste que amar o Deus intangível produz um sofrimento tangível e que amar um corpo de rapariga que se pode tocar produz em troca um prazer quase infinito?
Por acaso acreditar em Deus apaga-te o prazer humano?
Terá Deus sentido prazer ao criar Eva?
Terá Adão sentido prazer quando inventou Deus?
Por acaso Deus ajuda-te quando o teu corpo sofre?
Ou não é sequer uma anestesia fiável?
Importas-te que Deus exista? Ou não?
A sua não existência será para ti uma catástrofe mais terrível que a morte pura e dura?
Importar-te-á descobrir que Deus existe mas que está imerso no centro de nada?
Importar-te-á que desde o centro de nada se ignore tudo e em consequência nada conte?
Importar-te – ia a presunção de que se bem tu existas Deus quem sabe?


MÁRIO BENEDETTI


Às vezes as coisas dentro de nós


O que nos chama para dentro de nós mesmos
é uma vaga de luz, um pavio, uma sombra incerta.
Qualquer coisa que nos muda a escala do olhar
e nos torna piedosos, como quem já tem fé.
Nós que tivemos a vagarosa alegria repartida
pelo movimento, pela forma, pelo nome,
voltamos ao zero irradiante, ao ver
o que foi grande, o que foi pequeno, aliás
o que não tem tamanho, mas está agora
engrandecido dentro do novo olhar.


Para Maria de Lourdes Pintasilgo
em breve homenagem


Fiama Hassa Pais Brandão


Segundo dos poemas de infância


Quando foi que demorei os olhos
sobre os seios nascendo debaixo das blusas,
das raparigas que vinham, à tarde, brincar comigo?...
... Como nasci poeta,
devia ter sido muito antes que as mães se apercebecem disso
e fizessem mais largas as blusas para as suas meninas.
Quando, não sei ao certo.

Mas a história dos peitos, debaixo das blusas,
foi um grande mistério.
Tão grande que eu corria até ao cansaço.
E jogava pedradas a coisas impossíveis de tocar,
como sejam os pássaros quando passam voando.

E desafiava,
sem razão aparente,
rapazes muito mais velhos e fortes!
E uma vez,
de cima de um telhado,
joguei uma pedrada tão certeira
que levou o chapéu do Senhor Administrador!
Em toda a vila,
se falou logo num caso de política;
o Senhor Administrador mandou vir da cidade uma pistola,
que mostrava, nos cafés, a quem a queria ver;
e os do partido contrário
deixaram crescer o musgo nos telhados
com medo daquela raiva de tiros para o céu...

Tal era o mistério dos seios nascendo debaixo das blusas!

Manuel da Fonseca


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