LETRAS que geram palavras PALAVRAS que criam frases FRASES que dão sentido à Vida



AS PORTAS QUE ABRIL ABRIU


Era uma vez um país
onde entre o mar e a guerra
vivia o mais infeliz
dos povos à beira-terra.

Onde entre vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
um povo se debruçava
como um vime de tristeza
sobre um rio onde mirava
a sua própria pobreza.

Era uma vez um país
onde o pão era contado
onde quem tinha a raiz
tinha o fruto arrecadado
onde quem tinha o dinheiro
tinha o operário algemado
onde suava o ceifeiro
que dormia com o gado
onde tossia o mineiro
em Aljustrel ajustado
onde morria primeiro
quem nascia desgraçado.

Era uma vez um país
de tal maneira explorado
pelos consórcios fabris
pelo mando acumulado
pelas ideias nazis
pelo dinheiro estragado
pelo dobrar da cerviz
pelo trabalho amarrado
que até hoje já se diz
que nos tempos do passado
se chamava esse país
Portugal suicidado.

Ali nas vinhas sobredos
vales socalcos searas
serras atalhos veredas
lezírias e praias claras
vivia um povo tão pobre
que partia para a guerra
para encher quem estava podre
de comer a sua terra.

Um povo que era levado
para Angola nos porões
um povo que era tratado
como a arma dos patrões
um povo que era obrigado
a matar por suas mãos
sem saber que um bom soldado
nunca fere os seus irmãos.



In "José Carlos Ary dos Santos - Obra Poética"


Assim são as algas


Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.


Albano Martins
in "Folhas Caídas"
Biblioteca Municipal Almeida Garrett


Homenagem a João Paulo II


e de guitarra
tirou a mitra
cantou formiga
podou cigarra
chamou maria
a um colar
mandou esmagar
o anel servia
para ser beijado
e carimbar
o caos na terra
despiu a túnica
velhos a rir
crios a chorar
passou a vida
a deixar esperar
que o tempo
o viesse buscar
fez da oliveira
uma capela
onde se pode
onde se deve
morrer a cantar
fez de papa
como um actor
usou o homem
sorriu a dar
calou invejas
abriu igrejas
nas ventas
das velhas
lágrimas pias
e chuvas raras
do seu altar
o céu no chão
e a mão no ar


Joaquim Castro Caldas


Sei que o homem


Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
Porque tinha uma mulher no pensamento
Sei que os lavava como se os contasse


Sei que os enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados para o centro
Do amor, na operação poderosa
Do amor


Sei que cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados


Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu sangue


Na água corrente


Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava para o homem respirar


Daniel Faria

Seriam 34 anos que o poeta faria. Ficam-nos as suas palavras para o recordarmos.


Um Homem e a Sua Vida


Um homem não tem tempo na sua vida para ter tempo para tudo.
Não tem momentos que cheguem para ter momentos para todos os propósitos.
Eclesiastes está enganado acerca disto.

Um homem precisa de amar e odiar no mesmo instante,
de rir e chorar com os mesmos olhos,
com as mesmas mãos atirar e juntar pedras,
de fazer amor durante a guerra e guerra durante o amor.

E de odiar e perdoar e lembrar e esquecer,
de planear e confundir,
de comer e digerir o que a história leva anos e anos a fazer.

Um homem não tem tempo.

Quando perde procura,
quando encontra esquece,
quando esquece ama,
quando ama começa a esquecer.

E a sua alma é erudita,
a sua alma é profissional.
Só o seu corpo permanece sempre um amador.

Tenta e falha, fica confuso,
não aprende nada,
embriagado e cego nos seus prazeres e nas suas mágoas.

Morrerá como um figo morre no Outono,
Enrugado e cheio de si e doce,
as folhas secando no chão,
os ramos nus apontando para o lugar onde há tempo para tudo.


Yehuda Amichai (1924-2000), poeta israelita

Este foi o meu pequeno tributo a alguém muito querido que agora tem tempo para tudo.


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