LETRAS que geram palavras PALAVRAS que criam frases FRASES que dão sentido à Vida



Canto Moço - Zeca Afonso


Somos filhos da madrugada
Pelas praias do mar nos vamos
À procura de quem nos traga
Verde oliva de flor no ramo
Navegamos de vaga em vaga
Não soubemos de dor nem mágoa
Pelas praias do mar nos vamos
À procura de manhã clara


Lá do cimo de uma montanha
Acendemos uma fogueira
Para não se apagar a chama
Que dá vida na noite inteira
Mensageira pomba chamada
Companheira da madrugada
Quando a noite vier que venha
Lá do cimo de uma montanha


Onde o vento cortou amarras
Largaremos p'la noite fora
Onde há sempre uma boa estrela
Noite e dia ao romper da aurora
Vira a proa minha galera
Que a vitória já não espera
Fresca, brisa, moira encantada
Vira a proa da minha barca.

In: "Traz outro amigo também", 1970;



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Por FATHIA EL ASSAL

O Teatro é o pai de todas as Artes. Esta é uma verdade que ninguém pode contestar e, por esta razão, é a minha única e exclusiva paixão.
Sempre acreditei que os dramaturgos se distinguem pelos seus sentimentos de nobreza humana. A sua mensagem pode, então, ajudar as pessoas a erguerem-se acima de si próprias, a libertarem-se das suas frustrações, da exploração, e assim, serem capazes de ganhar um sentido de dignidade. Para que os dramaturgos consigam alcançar a sua missão e influenciar as pessoas, eles deviam dominar profundamente a sua profissão, e ter total controlo sobre a sua expressão artística. Caso contrário, a sua mensagem não deixará qualquer rasto, dispersando-se e fazendo que com que não atinja o seu alvo. Em toda a obra artística, a mensagem do artistas procura sempre um sentido de justiça humana, de maturidade de expressão e de autenticidade. Seria errado pensar que um destes factores primasse sobre o outro.
Dizem que o teatro é uma arte baseada numa estrutura sólida, destituída de elementos supérfluos, e que os seus diálogos deveriam ser firmes, concisos e distantes da tagarelice. Dizem também que é por esta razão que o teatro é incompatível com a natureza feminina, que é incapaz de se dissociar do seu ego e, consequentemente, incapaz de se expressar com objectividade. Dizem! A isto eu respondo: a mulher que carrega no seu ventre uma nova vida durante nove meses é também capaz de criar uma peça sólida e coerente. Com uma condição: que ela seja uma verdadeira dramaturga.
Felizmente, o teatro moderno libertou-se das formas tradicionais, na sequência de diversas correntes renovadoras iniciadas por Pirandello, Bernard Shaw, Brecht e tantos outros, pelo teatro do absurdo, pela recusa e pela experimentação avantgard. Actualmente é muito raro um dramaturgo escrever segundo um estilo tradicional.
Na minha primeira peça (“Women without Masks”) optei pelo “teatro dentro do teatro”, uma formula que se tornou familiar nas peças modernas. “Women without Masks” começou com um grito e uma questão, porque me sentia grávida de palavras com dezenas, talvez com centenas de anos.
Teria chegado o tempo para que as dores do parto, estrangulando o meu íntimo, fossem libertando e projectando a minha palavra até à existência? A minha palavra!... a minha paixão ... a minha infância ... a minha criança! Eu oiço a sua voz tão longe das queixas, dos suspiros. Uma voz que tinha sido esmagada e humilhada. Uma voz cujos ecos reverberaram geração após geração. A consciência, na história humana, suporta o peso pesado da perseguição e do cativeiro.
Eu recusei assentar no papel uma única frase que não emergisse da minha alma mais profunda. Nem uma linha que não expressasse a verdade sobre a mulher e sobre o seu poder de dádiva. É por isso que pedi à minha caneta que jurasse recusar escrever uma única linha se fosse para exprimir fraqueza ou frustração, bem como recusar obedecer-me se sentisse que me acobardava perante a verdade. Eu pedi-lhe, então, que me ajudasse a destacar o maior número de mulheres cujas vidas eu partilho, desenhando mais próximo delas e tornando-me na sua porta-voz.
Nós, assim, mostrar-nos-íamos completamente umas perante as outras, livrando-nos da ferrugem acumulada com a passagem do tempo. Nós gritaríamos contra todas as circunstâncias e eventos que nos privaram da explosão dos nossos poderes humanos.
Por último, eu acredito que o teatro é a luz que ilumina o caminho da raça humana. Uma luz que assegura um elo orgânico com o espectador criando calor entre nós – seja através da comunicação feita pelo texto escrito ou pela exibição no palco.

Tradução: Vanda Piteira e Nuno Moura – Instituto das Artes


Dia Mundial da Poesia II


DEIXAREI OS JARDINS A BRILHAR COM SEUS OLHOS

Deixarei os jardins a brilhar com seus olhos
detidos: hei-de partir quando as flores chegarem
à sua imagem. Este verão concentrado
em cada espelho. O próprio
movimento o entenebrece. Mas chamejam os lábios
dos animais. Deixarei as constelações panorâmicas destes dias
internos.


Vou morrer assim, arfando
entre o mar fotográfico
e côncavo
e as paredes com as pérolas afundadas. E a lua desencadeia nas
grutas
o sangue que se agrava.


Está cheio de candeias, o verão de onde se parte,
ígneo nessa criança
contemplada. Eu abandono estes jardins
ferozes, o génio
que soprou nos estúdios cavados. É a cólera que me leva
aos precipícios de agosto, e a mansidão
traz-me às janelas. São únicas as colinas como o ar
palpitante fechado num espelho. É a estação dos planetas.
Cada dia é um abismo atómico.


E o leite faz-se tenro durante
os eclipses. Bate em mim cada pancada do pedreiro
que talha no calcário a rosa congenital.
A carne, asfixiam-na os astros profundos nos casulos.
O verão é de azulejo.
É em nós que se encurva o nervo do arco
contra a flecha. Deus ataca-me
na candura. Fica, fria,
esta rede de jardins diante dos incêndios.
E uma criança
dá a volta à noite, acesa completamente
pelas mãos.


Herberto Helder
Cobra
Poesia Toda
Assírio & Alvim
1979


Dia Mundial da Poesia I


A PEQUENA PRAÇA

A minha vida tinha tomado a forma da pequena praça
Naquele outono em que a tua morte se organizava meticulosamente
Eu agarrava-me à praça porque tu amavas
A humanidade humilde e nostálgica dos pequenas lojas
Onde os caixeiros dobram e desdobram fitos e fazendas
Eu procurava tornar-me tu porque tu ias morrer
E a vida toda deixava ali de ser a minha
Eu procurava sorrir como tu sorrias
Ao vendedor de jornais ao vendedor de tabaco
E à mulher sem pernas que vendia violetas
Eu pedia à mulher sem pernas que rezasse por ti
Eu acendia velas em todos os altares
Das igrejas que ficam no canto desta praça
Pois mal abri os olhos e vi foi para ler
A vocação do eterno escrita no teu rosto
Eu convocava as ruas os lugares as gentes
Que foram as testemunhas do teu rosto
Para que eles te chamassem para que eles desfizessem
O tecido que a morte entrelaçava em ti

Sophia de Mello Breyner Andresen


Diário da tua ausência – a chuva no vidro


Eu já não me consigo lembrar de nós. Estranho porém que não te consigo esquecer a ti. Mas a imagem de nós juntos parece já tão distante e indistinta como o vidro baço onde as gotas de chuva fria deslizam no pó do pára-brisas do carro sujo. Ligo as escovas e a minha visão da vida volta a ficar nítida por mais uns segundos até voltar ao mesmo padrão disforme do vidro molhado... será o amor tanta chuva que nos embacia as janelas e não me deixa ver… não me deixa seguir o meu caminho…

E assim espero sozinho neste sábado à noite perto de tua casa. Dentro do carro apressadamente estacionado numa rua tão normal como tantas outras normais, distinta apenas por ser o local onde combinamos encontrarmo-nos e onde aguardo pacientemente por alguém que nunca chega, nunca vem, nunca está, nunca é…

Vou contando ansioso os minutos que não passam, seguindo com os olhos os carros que chegam com os faróis no escuro como olhos esgazeados, como borrões indistintos de luz no vidro embaciado mas nenhum deles é o teu, já não me lembro da última vez que foi o teu. O teu não brilha no escuro da minha espera é apenas lembrança do pouco que ainda me consigo lembrar.

Já passaram duas horas… tu já não deves aparecer… tanto tempo depois de te teres ido embora, esperava que nos reencontrássemos de novo. Esperava que o tempo te tivesse feito perceber que a borboleta que és um dia cansa as asas e a árvore que tenho sido, onde sempre pudeste pousar, tem os braços cansados como galhos de árvore velha que morre e onde os passarinhos já não fazem ninhos. Esperava que percebesses que não sou eterno como o meu amor por ti nesta eterna espera.

Tu já não deves aparecer… dói, mas é verdade! E a visão borratada do mundo continua, não sei se pela chuva que bate na vidraça do carro se pelos olhos rasos de lágrimas que sofregamente enxugo num suspiro. As gotas salgadas que me rolam na face como as gotas pequenas geladas que deslizam pelo vidro abaixo lá fora. Às vezes gosto de imaginar que somos duas gotas que deslizam no vidro, na estúpida probabilidade matemática de nos unirmos algures no caminho numa gota só.
Mas não deve ser hoje… tu já não deves aparecer… e eu já cá não estarei.
Limpo as lágrimas, limpo o vidro, dou à chave e sigo em frente.

de João Natal
in http://poetrycafe.weblog.com.pt/

deixo-vos este maravilhoso conto publicado em 12 de Março como prelúdio do Dia Mundial de Poesia que amanhã se comemora.


Queixa das almas jovens censuradas


Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
E um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola.

Dão-nos um mapa imaginário
Que tem a forma duma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idade.

Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos o prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência.

Dão-nos um barco e um chapéu
Para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
Levado à cena num teatro.

Penteiam-nos os crânios ermos
Com as cabeleiras dos avós
Para jamais nos parecermos
Connosco quando estamos sós.

Dão-nos um bolo que é a história
Da nossa história sem enredo
E não nos soa na memória
Outra palavra para o medo.

Temos fantasmas tão educados
Que adormecemos no seu ombro
Sonos vazios, despovoados
De personagens do assombro.

Dão-nos a capa do evangelho
E um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
Para pentearmos um macaco.

Dão-nos um cravo preso à cabeça
E uma cabeça presa à cintura
Para que o corpo não pareça
A forma da alma que o procura.

Dão-nos um esquife feito de ferro
Com embutidos de diamante
Para organizar já o enterro
Do nosso corpo mais adiante.

Dão-nos um nome e um jornal,
Um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
Que espeta os cornos no destino.

Dão-nos marujos de papelão
Com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
Não é a vida. Nem é a morte.

Natália Correia
Poesia Completa
Publicações Dom Quixote 1999

E porque dia 8 de Março é o Dia da Mulher, nada melhor que um poema de uma grande poetisa. A todas as Mulheres, desejo um excelente dia,
Rui Vieira


    ddupla@hotmail.com

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    • Aos Domingos o Dose Dupla emite na Xl-FM o New Wave. A Poesia marca presença com a rubrica Sopa de Letras.
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