LETRAS que geram palavras PALAVRAS que criam frases FRASES que dão sentido à Vida



O POEMA ORIGINAL


Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutra espasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse ao abismo
e faz um filho às palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever em sismo.

Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte
faz devorar em jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.

Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce à rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.

Original é o poeta
que chega ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.

Esse que despe a poesia
como se fosse mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer.

Ary dos Santos


Há palavras que nos beijam


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill


Cantiga de Abril


Às Forças Armadas e ao povo de Portugal
"Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade"
Jorge de Sena

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinqüenta anos reinaram neste país,
e conta de tantos danos, de tantos crimes e enganos,
chegava até à raíz.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Tantos morreram sem ver o dia do despertar!
Tantos sem poder saber com que letras escrever,
com que palavras gritar!

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Essa paz de cemitério toda prisão ou censura.
e o poder feito galdério, sem limite e sem cautério,
todo embófia e sinecura.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esses ricos sem vergonha,
esses pobres sem futuro,
essa emigração medonha,
e a tristeza uma peçonha
envenenando o ar puro.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Essas guerra de além-mar
gastando as armas e a gente,
esse morrer e matar sem sinal
de se acabar por política demente.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esse perder-se no mundo o nome de Portugal,
essa amargura sem fundo,
só miséria sem segundo,
só desespero fatal.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos durou esta eternidade,
numa sombra de gusanos
e em negócios de ciganos,
entre mentira e maldade.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Saem tanques para a rua,
sai o povo logo atrás:
estala enfim, altiva e nua,
com força que não recua,
a verdade mais veraz.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

26/28? de Abril de 1974


MULHERES


As minhas três irmãs estão sentadas
sobre rochas de obsidiana preta.
Pela primeira vez, a esta luz, consigo ver quem são.

A minha primeira irmã está a coser o fato para a procissão.
Vai vestida de Senhora Transparente
e todos os seus nervos estarão à vista.

A minha segunda irmã também está a coser
sobre a ferida do peito, que nunca cicatrizou completamente.
Espera, enfim, aliviar este aperto no coração.

A minha terceira irmã está a contemplar
uma crosta vermelho-escura que a ocidente se estende ao longe sobre o mar.
Tem as meias rotas mas é formosa.

de Adrienne Rich
Tradução de Margarida Vale de Gato
.


A essência do éter


Numa edição especial do Sem Rumo e Dose Dupla, com a companhia de José Carlos Tinoco, a música fundiu-se à palavra e foram vários os momentos de elevação dos sentidos.
Entre as muitas escolhas possiveis, seleccionei um poema lido por mim e outro pela Cláudia.
Espero que apreciem a selecção.


Belo é quem o bem pratica
Provérbio português

Não quero propósito nenhum sem propósito, Kant
Não quero propositada no belo
Tamanha falta de propósito.
Talvez seja vício de pensamento, mas, Kant
Sempre do belo esperei algum propósito
Por exemplo ser bom.
Erro de cálculo meu, com certeza, Kant
Mas que de bom seria se o belo fosse bom
Ou que algum belo do bom viesse.
Mas nada de bom do belo vem
A não ser belo e belo partir
Assim desinteressada
E despropositadamente, Kant

Daniel Jonas
In “Os fantasmas Inquilinos”
EU MORRIA DE TI

Eu morria de ti
Mas tu eras o meu viver

Tu ias comigo
Tu cantavas em mim
Quando percorri as ruas
Sem nenhum destino
Tu ias comigo
Tu cantavas em mim

Tu convidavas os pardais apaixonados do meio das árvores
Para a manhã da janela
Quando a noite se embaciava
Quando a noite não acabava
Tu convidavas os pardais apaixonados do meio das árvores
Para a manhã da janela.

Tu davas as tuas mãos
Tu davas o teu olhar
Tu davas o teu carinho
Quando eu tinha fome
Tu davas a tua vida
Tu eras generoso como a luz
Tu vinhas ao nosso beco com as tuas luzes
Tu vinhas com as tuas luzes
Quando as crianças partiam
E as pétalas das acácias adormeciam
E eu ficava sozinha no espelho
Tu vinhas com as tuas luzes…
Tu colhias as pétalas
E cobria as minhas madeixas
Quando as minhas madeixas tremiam de desejo
Tu colhias as pétalas

Tu encostavas o teu rosto
À inquietude do meu peito
Quando eu
Não tinha mais nada para dizer
Tu encostavas o teu rosto
À inquietude do meu peito
E escutavas
O meu sangue que corria
A minha paixão lacrimejante que eu morria

Tu ouvias –me
Mas não me ouvias

Forugh Farrokhazad traduzido por Mohsen Rostami-
In “Águas Furtadas” – Núcleo de Jornalismo Académico do Porto


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    • Aos Domingos o Dose Dupla emite na Xl-FM o New Wave. A Poesia marca presença com a rubrica Sopa de Letras.
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