LETRAS que geram palavras PALAVRAS que criam frases FRASES que dão sentido à Vida



A noite passada


A noite passada acordei com o teu beijo
descias o Douro e eu fui esperar-te ao Tejo
vinhas numa barca que não vi passar
corri pela margem até à beira do mar
até que te vi num castelo de areia
cantavas "sou gaivota e fui sereia"
ri-me de ti "então porque não voas?"
e então tu olhaste
depois sorriste
abriste a janela e voaste

A noite passada fui passear no mar
a viola irmã cuidou de me arrastar
chegado ao mar alto abriu-se em dois o mundo
olhei para baixo dormias lá no fundo
faltou-me o pé senti que me afundava
por entre as algas teu cabelo boiava
a lua cheia escureceu nas águas
e então falámos
e então dissemos
aqui vivemos muitos anos

A noite passada um paredão ruiu
pela fresta aberta o meu peito fugiu
estavas do outro lado a tricotar janelas
vias-me em segredo ao debruçar-te nelas
cheguei-me a ti disse baixinho "olá",
toquei-te no ombro e a marca ficou lá
o sol inteiro caiu entre os montes
e então olhaste
depois sorriste
disseste "ainda bem que voltaste"

de Sérgio Godinho
in "Pré-histórias", 1972

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PARA TI, AQUI, ALI, NO MUNDO


A viagem prossegue, indeterminada, sem rumo.
Desfrutando a paisagem, vivendo o momento.
Para quê pressas, riscos, sobressaltos?
Para quê trocar o dia pela noite!
Se dormimos sozinhos...

A pouco e pouco te encontro
E teu fascínio vai em mim crescendo,
Substituindo alguém que me não merece,
com quem viajei depressa mas pouco,
Secretos amores, marcantes, só meus.

Mas de ti tal não direi
já que espero mais, muito e bastante.
Certo estou de que comigo estarás.
Diferente és, das outras iguais.
Contigo estarei enquanto quizeres.

Mas forçando o caminho o fim chegará
E tudo o que é belo se torna rotina
Sim, o Mundo não acaba hoje.
MAS VIVEREMOS AMANHÃ?

in Fragmentos, edição do autor
o autor assina simplesmente EU


UMA HISTÓRIA VULGAR


Ouvir a tua voz, outrora, era o bastante
Para sentir, enfim, justificada, a vida;
E supor que podia, a partir desse instante,
Abrir, impunemente, ao mundo, confiante,
Minh'alma enternecida.

Fitar o teu olhar, era um deslumbramento,.
Que me transfigurava e me fazia crer
Que depois de viver, na terra, esse momento,
-- Sereno, como após o extremo sacramento --,
Já podia morrer.

Premia as tuas mãos nas minhas e dizia,
Com profunda emoção: -- É só por ti que existo!
-- Como foi isto, amor? Do nosso olhar, um dia,
Caiu neve no fogo em que a minh'alma ardia...
Amor, como foi isto?!

Passas por mim, agora, e nada me insinua
Ser a tua presença o derradeiro elo
Que me prendia à vida. -- E a vida continua!
E tudo, como outrora, (o sol, o mar, a lua...)
Mesmo sem ti, é belo!

Como havemos de ter, nos outros, confiança?
Que humano sentimento a nossa fé merece?
De que servem, na vida, os ideais e a esperança,
Se o próprio Amor, -- como os brinquedos, em criança --,
Tão cedo, para nós, perde o encanto e esquece?!

de Carlos Queirós


O POEMA ORIGINAL


Original é o poeta
que se origina a si mesmo
que numa sílaba é seta
noutra espasmo ou cataclismo
o que se atira ao poema
como se fosse ao abismo
e faz um filho às palavras
na cama do romantismo.
Original é o poeta
capaz de escrever em sismo.

Original é o poeta
de origem clara e comum
que sendo de toda a parte
não é de lugar algum.
O que gera a própria arte
na força de ser só um
por todos a quem a sorte
faz devorar em jejum.
Original é o poeta
que de todos for só um.

Original é o poeta
expulso do paraíso
por saber compreender
o que é o choro e o riso;
aquele que desce à rua
bebe copos quebra nozes
e ferra em quem tem juízo
versos brancos e ferozes.
Original é o poeta
que é gato de sete vozes.

Original é o poeta
que chega ao despudor
de escrever todos os dias
como se fizesse amor.

Esse que despe a poesia
como se fosse mulher
e nela emprenha a alegria
de ser um homem qualquer.

Ary dos Santos


Há palavras que nos beijam


Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill


Cantiga de Abril


Às Forças Armadas e ao povo de Portugal
"Não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade"
Jorge de Sena

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinqüenta anos reinaram neste país,
e conta de tantos danos, de tantos crimes e enganos,
chegava até à raíz.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Tantos morreram sem ver o dia do despertar!
Tantos sem poder saber com que letras escrever,
com que palavras gritar!

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Essa paz de cemitério toda prisão ou censura.
e o poder feito galdério, sem limite e sem cautério,
todo embófia e sinecura.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esses ricos sem vergonha,
esses pobres sem futuro,
essa emigração medonha,
e a tristeza uma peçonha
envenenando o ar puro.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Essas guerra de além-mar
gastando as armas e a gente,
esse morrer e matar sem sinal
de se acabar por política demente.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Esse perder-se no mundo o nome de Portugal,
essa amargura sem fundo,
só miséria sem segundo,
só desespero fatal.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Quase, quase cinquenta anos durou esta eternidade,
numa sombra de gusanos
e em negócios de ciganos,
entre mentira e maldade.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

Saem tanques para a rua,
sai o povo logo atrás:
estala enfim, altiva e nua,
com força que não recua,
a verdade mais veraz.

Qual a cor da liberdade?
É verde, verde e vermelha.

26/28? de Abril de 1974


MULHERES


As minhas três irmãs estão sentadas
sobre rochas de obsidiana preta.
Pela primeira vez, a esta luz, consigo ver quem são.

A minha primeira irmã está a coser o fato para a procissão.
Vai vestida de Senhora Transparente
e todos os seus nervos estarão à vista.

A minha segunda irmã também está a coser
sobre a ferida do peito, que nunca cicatrizou completamente.
Espera, enfim, aliviar este aperto no coração.

A minha terceira irmã está a contemplar
uma crosta vermelho-escura que a ocidente se estende ao longe sobre o mar.
Tem as meias rotas mas é formosa.

de Adrienne Rich
Tradução de Margarida Vale de Gato
.


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